Dez anos atrás, mentira, onze, eu comecei a traduzir um livro estranho, “The Renaissance”, de Walter Pater. É um livro sobre as vidas e obras dos artistas e filósofos do Renascimento, mas que inventa parte dos acontecimentos que narra e diz que, por exemplo, a melhor obra de Leonardo da Vinci não foi feita por Leonardo da Vinci, mas por um fulano qualquer, hoje esquecido, que por acaso estava no raio de influência de da Vinci e pegou a inspiração dele como se pega uma gripe, sem saber de onde veio, sem controle da situação, possuído.
Ou então, outro exemplo do livro: a maior obra de Pico della Mirandola (até lendo em voz baixa esse nome é como se eu lesse em voz alta), de novo, a maior obra de Pico della Mirandola é aquela que ele nunca conseguiu escrever, mas quis com todas as forças ser capaz de escrever — o livro para acabar de vez com todos os livros, aquele que responderia por todos os paradoxos do universo, muito mais do que as 900 teses que de fato escreveu, em que disse ter explorado todo o conhecimento da humanidade, e que começa respondendo (fofo) à pergunta de por que o ser humano existe, e pra quê. (Não vou contar aqui, já fizemos um episódio inteiro dedicado ao homem no Vinte mil léguas, o único episódio polêmico de um podcast todo ele sabor chá. Eu amo chá.)
Bom, e daí? E daí nada. Me perdi um segundo, deixa eu voltar.
Comecei a traduzir Walter Pater doze anos atrás e ano passado voltei pro livro e comecei a retraduzir. Quanto eu terminar a tradução (já tá quase) e terminar de escrever o posfácio (já tá médio), ele vai pra editora e uma hora sai. MAS — me interrompe meu interlocutor invisível — por que publicar um livro desses hoje? E — agora ele me humilha — quem é que vai ler?
Eu detesto ter que argumentar com gente assim, que me olha de um jeito que me deixa muito consciente de ter um nariz. Aliás, o Walter Pater, coitado. Dizem que era tão feio que os amigos se juntaram para convencê-lo a deixar crescer o bigode: assim disfarçava um pouco o rosto.
Em vez de responder os porquês e pra quems, vou contar do que me aconteceu agora cedo, enquanto eu revisava um capítulo da tradução: percebi que estava lendo com medo de que tivesse alguém atrás da mim espiando o texto por cima do meu ombro. Me sinto indecente lendo que a Mona Lisa…
…é mais velha do que as pedras em meio às quais descansa; como o vampiro, já morreu muitas vezes e aprendeu os segredos do túmulo; mergulhou em mares profundos e guardou as manhãs de outrora; traficou estranhos tecidos com os mercadores do Oriente; e, como Leda, foi mãe de Helena de Tróia e, como a Sant'Ana, foi mãe de Maria; e tudo isso, para ela, não passou do som de liras e flautas, e vive agora na delicadeza que desenhou seus traços mutáveis e lhe tingiu as pálpebras e mãos.
Que escritor é esse! É tudo tão de outra época que parece acusar algo grave em nosso mundo só por ser chamado de volta da tumba pra circular entre nós.
Eu poderia dizer que tem algo de indecente no livro porque deve ter ficado gravado nas células dele o fato de que, quando saiu, no final do século 19, foi mesmo considerado obsceno, e eu poderia dizer que foi porque Pater construiu uma história da arte que é uma história da arte gay ou queer (nenhum dos termos estavam disponíveis à época), e que muito do que o Pater inventa nas histórias que conta tem a ver com forçar a mão na interpretação do passado e, com isso, sussurrar gritando: os grandes artistas do passado eram eles também, assim como o próprio Pater (assim como Oscar Wilde, seu discípulo e rival), homens gays. Eu poderia, porque tudo isso é fato. Mas.
Mas: os fatos são a parte menos importante da vida, e o livro faz questão de nos tirar do comodismo de dizer que qualquer pessoa é quem ela é, de fato. O melhor livro do Pico della Mirandola é o que nunca existiu, o melhor Da Vinci não é um Da Vinci original, a vida não é só a vida, e pimba. E as consequências disso no nosso mundo seriam tão enormes que é aí que a leitura de Pater me parece uma coisa pra ser secreta, só minha, da qual eu tenho medo até quando estou sozinha porque parece me levar para algo muito maior do que tudo o que eu conheço e que poderia me fazer — e aqui o meu interlocutor me interrompe de novo: Ora, direis ouvir estrelas?

Murchei.
Eu e a Leda (não a mãe de Helena — minha amiga Leda) conversamos muito sobre nossos trabalhos paralelos quando não estamos fazendo o Vinte mil léguas, e enquanto eu estou às voltas com Pater, a Leda leva a Simone Weil pra passear dentro da cabeça dela— e é da Simone Weil que eu roubei essa frase aqui: “A mulher bonita quando se olha no espelho acredita que ela é só aquilo que vê. A mulher feia sabe que ela não é só isso”.
Walter Pater e Simone Weil, Simone Weil e Walter Pater, dois feios maravilhosos.
Primeiro, não fui à China porque acordei e fritei um ovo.
Esta é a segunda vez que eu não vou à China, e é porque vim defender a dignidade da imaginação.
Você colocou meu cérebro pra rir e refletir ao mesmo tempo tudo junto agora!
Viva tudo que "não serve" e que "ninguém leria".